quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ressonâncias do mundo na pintura* / Estágio no Instituto Português da Juventude (Braga)

O ser humano pode apreender a realidade de forma objectiva, ou seja, aquilo que se apresenta à sua consciência ele o apreende com a consciência cognitiva, isto é, abordagem da realidade onde impera um certo grau de objectividade. Neste sentido as coisas do mundo, ao nível da consciência ou da percepção cognitiva, coloridas de tonalidades e sentimentos, que não se apresentam sob a forma de elementos subjectivos, mas de qualidades objectivas, fazem parte da consciência cognitiva.
Todavia, estas mesmas coisas que se oferecem à percepção cognitiva, também se oferecem à percepção estética. A consciência estética comporta uma abordagem diferente da cognitiva. Por um lado, situa-se no âmbito do sensível e privilegia aspectos subjectivos e, por outro, difere de uma consciência prática, no sentido de que é algo direccionado para algum fim.
Na consciência estética os aspectos emocionais[1]têm um papel de destaque. A mesma realidade, como há pouco dissemos, que se apresenta à consciência cognitiva, é vista a partir de um prisma completamente diferente. Por isso disse, com muita propriedade, o pintor russo Wassily Kandinsky, que quando “o leitor considera um objecto qualquer que esteja colocado sobre a sua mesa (mesmo uma ponta de cigarro), apreenderá o seu sentido exterior ao mesmo tempo que experimentará a sua ressonância interior, sendo que um se mantém sempre independente da outra. E assim sucederá em qualquer altura e em qualquer lugar, na rua, numa igreja, no ar, na água, num estábulo, numa floresta. O mundo está repleto de ressonâncias. Ele constitui um cosmos de seres que exercem uma acção espiritual. Matéria morta é espírito vivo.”[2] E é a consciência estética que tem a capacidade de apreender essa ressonância que transborda nas coisas mais simples que constituem o mundo.
Por outro lado, a percepção estética tem a característica de sinalizar a transcendência, isto é, a consciência estética é reveladora de algo que está para lá de si mesma. Quando, por exemplo, observamos uma pintura, numa tela ou noutra superfície qualquer, percebemos que o que quer que esteja lá representado é sempre algo que, por assim dizer, nos atira para outras vivências.
Estas duas características que aqui enumeramos encontram-se, de uma ou de outra forma, presentes na arte e acompanham a sua respectiva percepção. Por isso, a pintura não foge à regra, antes se manifesta na célebre questão da forma e do conteúdo. A propósito disto lembramo-nos da maneira como Kandinsky abordou a questão, mostrando que a forma, mesmo na pintura abstracta, está sempre presente na ressonância da qual o mundo está repleto e que cabe à consciência estética captar. “Chegamos assim à conclusão, diz o autor, de que abstracção pura, tal como o realismo puro, se serve das coisas na sua existência material. A maior negação do objecto e a sua afirmação são equivalentes. E esta equivalência é justificada pela procura do mesmo fim: a expressão da mesma ressonância interior.”[3]
Todos os seres humanos, com maior ou menor intensidade, sentem essa ressonância do mundo em que habitam. Todo o ser humano é sensível à beleza da natureza. Contudo só aqueles que sentem isso de uma maneira, que sabem captar o eco que vem da natureza, se transformam em artistas, só eles podem transmitir-nos, pela arte, esse eco.
É precisamente estas qualidades que encontramos em Caravaggio, em Manet e em todos os outros. Porém, não ficamos apenas por aqueles que a história nos transmite como exemplos. Muitos outros artistas desconhecidos, ainda sem nome consagrado, ou arredados dos circuitos do reconhecimento “oficial” contribuíram e continuam a contribuir para que todos nós possamos contemplar a ressonância que se “agarra” à consciência estética. Foi precisamente isso que experimentámos no âmbito do nosso estágio no Instituto Português da Juventude, em Braga, por ocasião de uma exposição de pintura do jovem pintor artista Cláudio.
A pintura deste artista transmite à consciência estética a ressonância dos anseios mais profundos da existência humana. Nas suas obras surge uma transcendência, um movimento de superação que nos transporta para outras vivências.
O jovem Cláudio expôs na galeria do Instituto Português da Juventude um número considerável de obras que despertaram a nossa reflexão, reforçada também pelo contacto pessoal com ele. Percebemos nesta ocasião que o artista usava a pintura como um meio de comunicação pré-verbal, apoiando-se na própria linguagem simbólica que a pintura tem e que, dadas as suas dificuldades de comunicação verbal, servem de ponte entre ele e as pessoas mais próximas.
As suas telas revelavam um gosto especial pela cor como tema, fazendo-nos lembrar Monet. Apesar disso, as diversas temáticas eram ora abordadas recorrendo à pintura figurativa ora à pintura abstracta. Na realidade esta distinção é de pouco relevo, pois “a criação é um excelente meio de auto-expressão e de auto-exploração. Um desenho é uma descrição mais precisa dos sentimentos do que as palavras…”[4]. E o caso do Cláudio é especial. Para ele não é apenas a dificuldade de expressar a profundidade daquilo que sente ou o que vive, é também a dificuldade de estabelecer comunicação por razões de natureza linguística. Portanto, para o Cláudio a pintura surge como uma espécie de compensação que ele domina com tanta mais mestria quanto mais a doença nele se vem manifestando. Mistério da “consciência” artística, por cuja mediação nos transmite de forma tão sensível essa tal ressonância de que falámos no princípio deste texto.

* Comentário realizado a pretexto da exposição de pintura do artista Cláudio João, intitulada Coragem de Vida, que teve lugar no espaço de exposições do Instituto Português da Juventude / Braga (13 a 31 de Outubro de 2008)

Texto elaborado pelo estagiário Higino Lombe

[1] E neste sentido emocional não é o oposto de racional… não estamos a fazer uma contraposição entre aquilo que é do âmbito da sensibilidade e do âmbito racional.
[2] W. Kandinsky, Gramática da Criação, Tradução de José Eduardo Rodil, Edições 70, Lisboa, pag. 30.
[3] W. Kandinsky, Ibidem, pag 27.
[4] A. Sousa, Arte e Terapia, Livros Horizonte, Lisboa, 2005., p. 255

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